
SERRA SEM FIM
(este texto é parte de uma sequência que ainda venho escrevendo, em prosa poética. a “serra sem fim” tem como base a cena do vapor pairando sobre o rio das antas, cedo da manhã, na serra gaúcha)
a mulher nascida na serra sem fim se levanta
os fios do seu cabelo amanhecem úmidos, de terem sido lavados muito tarde ontem. ela sente o assoalho – a planta dos pés da mulher da serra sem fim
é sempre áspera. ela vive caminhando descalça no chão de pedra do quintal de casa
estende roupa. nos fins de semana come uva colhida de uma parreira tímida
o fruto é miúdo, quase não vinga; ainda assim, há famílias que insistem no cultivo
essas famílias são tristes. há todo um reino de azuis em jogo
.
ela se olha no espelho. tira a calcinha, que é velha
sei que é velha porque não a imagino em cor viva. as lavagens já foram muitas, desbotaram-na
.
aos domingos, depois de amar, ela dorme. de bruços. as pernas semiabertas, imóveis, numa geometria em que poderíamos vislumbrar o ângulo do telhado da casa
chegando a noite, acorda; levanta-se, anda em silêncio pelo corredor, pela sala
.
a mulher da região da serra sem fim lava a calcinha sempre no banheiro, e é o vapor então que resgata o único mar possível nesse lugar. mar como desolação
a certa altura do banho nenhum limite mais separa o vapor da umidade própria da respiração e o da água do chuveiro
.
por vezes uma pássara prenha entra em algum dos vãos do beiral do telhado. com o ninho já construído, ela se instala e põe seus ovos. em fevereiro e março, no período de chuvas mais intensas, é comum que um dos filhotes caia – recém-nascido, horrível. roxo. sem penas, só cabeça e bico
no dia seguinte ele é varrido para um canto e fica amontoado junto com as cascas de uvas comidas. essa é a escola rude de tinturaria da serra:
cadáver, vindima e fome
.
o banho demora em geral uns dez minutos; é um banho rápido. os chuveiros, muito antigos
ao longo desse tempo ela lava a calcinha, suja de sêmen. ao lavá-la, gosta de pensar que
em vez de descer com a água pelo ralo, o sêmen, tal como o álcool, volatiliza-se, dissipando-se com as gotículas de vapor do ambiente
ela toma banho. e respira fundo, sentindo como se o homem que há pouco penetrou seu sexo estivesse agora penetrando seu pulmão
depois
com a toalha enrolada no cabelo, como um animal inaudito – uma espécie mítica, meio mulher, meio rinoceronte
a toalha enrolada como um corno imenso no centro da cabeça
anda. abre a porta de acesso aos fundos. pega um prendedor da cestinha – e, de pés descalços, ainda morna e predatória, pendura a calcinha no varal
.
pernoitam e amanhecem nos varais, as calcinhas. as mulheres recolhem-nas perto do meio-dia, depois do período do vapor
vestem-nas. passam a tarde com elas.
à noite surgem nuas, e os homens amam-nas e dizem que seus grandes lábios cheiram a cerração
.
pela manhã, o sol aparece aos poucos. com seus cabelos volumosos, ondulados, as mulheres mimetizam em menor escala a cena da travessia da claridade nas copas das árvores
a cerração imanta os quartos, imanta os móveis e as cortinas; e os mortos participam desse processo todo, no espaço; em silêncio
de fora, a certa distância, a casa nessas manhãs mal pode ser vista. o contorno dos telhados e das chaminés se perde
na casa fabula-se outra casa. em ruínas
CADERNO DAS MIRAGENS
I
educar os olhos. cegá-los
aprender tudo pelo mar, que espelha o céu – que não tem fim
deus é a terceira margem
a partícula de sal, o grão de areia
os chineses colocavam pérolas nas bocas de seus mortos, para que fizessem boa travessia
no mesmo mar de eternamente, da pérola de eternamente, o barco não cessa de partir
há no méxico uma espécie de borboleta que tem asas transparentes; chama-se “greta oto”
tudo terá valido a pena se antes de morrer eu puder ver um segundo de mundo pela asa de uma borboleta
II
vento sobre vento: assim diz o i ching, no hexagrama 57
li em algum lugar que o i ching é um dos livros mais antigos da humanidade, tendo pelo menos três mil anos de existência
a libélula sumindo do meu campo de vista
uma das hipóteses sobre a origem do nome “libélula” é de que ele viria do termo latino “liber”
também daí vem “livro”; vento sobre vento
na palavra, o silêncio
amar e morrer
o ideal de um livro é que seja escrito numa asa
III
o fim de uma estação
as janelas semiabertas, as casas. a chuva, que parou há pouco
o céu nascendo e morrendo tantas vezes à superfície de uma poça d’água, na calçada
os espelhos
a promessa de dias novos orientando aquele que atravessa uma cidade ou um deserto
os rostos, os rastros
as cinzas dos nossos mortos espargidas
o pó que se ergue no voo da mariposa
À PARTE DO REINO
I
as mulheres são todas iguais
todas, sem exceção. as de ontem, iguais às de hoje, as de hoje, iguais
às de amanhã
que não se engane o meu amor, porque em breve
a ex dele voltará através de mim, para dizer pela minha boca o que não pôde dizer pela sua
eu farei o mesmo, pela boca da próxima
e assim sucessivamente
é uma maldição
entramos na vida de um homem como se fôssemos cada uma
uma só
com o passar do tempo nos tornamos todas iguais
juramos sempre o mesmo amor no começo
rogamos sempre as mesmas pragas antes de bater a porta, no final
sempre a mesma garganta
a mesma língua de gárgula
.
as mulheres são todas iguais
por isso quando caminho pelo bairro me olho nos olhos que me olham
sou a moça parada à janela, translúcida
sou a que atravessa o dia pensando em rosas
do povo
de hiroshima
de gertrude stein
de ninguém
estou na rua, mas estou em casa
estou em mim mesma como no meio de uma catedral vazia, o sino sendo tangido pelo silêncio
.
o meu amor não sabe
se disser o nome de uma mulher, dirá o nome de todas
somos em certo sentido indeléveis como ar. somos todas marias
linhas de sombra e luz, fina fenda
somos um pássaro
e há um mundo inteiro suspenso nos fios de nossa respiração
.
li esses dias que os ciclos de sangue de mulheres que moram juntas tornam-se sincrônicos. vou mais longe, digo que também passamos a nos encontrar
em sonho. nessas horas, até chamamos umas às outras pelo nome
(em voz baixa, para que não se rompa
o fio de prata)
.
as mulheres são todas iguais, basta olhar com atenção
veja, por exemplo:
pouco depois de se separar de ted, sylvia se suicidou usando gás de cozinha
mais tarde, assia, a nova esposa, repetiu o ato
a mesma cena
o mesmo gás
o mesmo homem
as mulheres são todas iguais
.
pelas mãos de salomé, também eu servi a cabeça de joão batista numa bandeja
pelas mãos de lucrécia bórgia, também eu misturei cantarella no vinho
e terminei o dia envenenando um marido
.
esta noite o meu amor se deitará com sua nova namorada. nela estaremos todas
repetíveis, labirínticas
espelhos
espectros umas das outras
de madrugada, ele será seduzido com beijos e cheiros. quando descobrir que é a mesma mulher de sempre
o mesmo antigo demônio fêmeo
nessa hora será tarde. já a terá fecundado
já terá continuado nossa linhagem má
numa filha
*
esta série, ainda em construção, dedico-a a algumas das muitas poetas vivas do nosso tempo. são mulheres que leio e que me acompanham, me influenciam. ao longo dos poemas que a compõem, há passagens remetendo a versos de autoria de algumas delas. discrimino-nos abaixo.
adriane garcia (“o mundo inteiro / depende / do pulsar cardíaco / do pássaro”). ingrid morandian. isabela penov (“aves marias – ou a revoada”). lisa alves. maiara gouveia (“antes que se rompa o fio de prata”). mariana botelho (“o silêncio tange o sino”). nydia bonetti (“quem sabe uma rosa / do povo / de hiroshima / de gertrud / de ninguém”). raquel gaio. roberta tostes daniel (“linhas de sombra, escalas de cinza”). samantha abreu. wanda monteiro (“abre a fina fenda”).
AS FILHAS, AS MÃES, AS AVÓS
I
resta sempre uma palavra muda na minha boca
sempre a mesma palavra trazida da infância, dissolvendo-se na boca
como uma hóstia
II
eu e minha irmã tínhamos cada uma
uma boneca que era como filha, e essas cuidávamos com um zelo sem medida
nas noites de frio, deitávamos elas nas nossas camas, para dormirem junto
e havia toda vez um beijo de boa-noite, e pelas mãos íamos cercando seus corpinhos de pano com relâmpagos
.
éramos muito meninas
os cabelos ainda muito finos, como se tivessem sido feitos por bichos da seda. na pele, os sinais da lua, do eclipse. a sombra no púbis, no umbigo
o sono respirando
nos lábios entreabertos. uma mesma noite atravessava os anos pela boca da mãe até nossas bocas
e das nossas bocas até a boca das bonecas
num ciclo de perpetuação
da fome
VI
sempre que costurava, minha mãe parecia eterna. eu me sentava no chão mesmo, e à sombra do seu corpo meu corpo crescia. quase não falávamos uma com a outra
quando ocorria de falarmos era numa língua composta por uma única palavra, hoje impronunciável
tudo em mim era medo. sentia, por exemplo, que se tocasse minha mãe poderia vir a romper a linha
a única linha invisível
entre tantas outras, visíveis, desenrolando-se continuamente dos carretéis na máquina de costura. por isso não a tocava. e seguia crendo que assim ficava assegurada a manutenção de algum tipo de equilíbrio de cena
.
na mesa de corte, uma almofadinha crivada de alfinetes e agulhas
a janela aberta, e a luz cintilando na ponta da agulha mais alta, como o dedo
de um deus doméstico de inox
VII
em menos de uma semana o chão ficava outra vez tapado de retalhos
eu e minha irmã juntávamos os maiores
pondo-os numa sacola
era com eles que costurávamos os cueiros para nossas bonecas
(coisa malfeita, de um artesanato inábil)
na hora de enrolar os corpinhos, muitas das remendas se abriam
ainda não tínhamos mãos para o trabalho maligno da sutura
.
as manequins nos acompanhavam, seus olhos vazios
eram mulheres paradas no meio do caminho, estátuas de sal
bíblicas mulheres de ló
DUAS MULHERES
I
pelo tanto de água no chão, o rastro indo do banheiro até o quarto
assim uma mulher sabe
da outra – se ela lavou ou não o cabelo
pelo desfiado da costura, percebe que aquela é a calcinha que ela mais usa
pela semente de maracujá retida na base das costas, na curva entre as nádegas
vê que ela prefere sabonetes desses naturais
ao tocar o seio, reconhece o sutiã que se ajusta
ou se ela costuma andar sem
pelo gosto do sexo na língua, descobre o sangue vindo nos próximos dias
nada precisa ser dito
tudo se pressente
se adivinha
depende de tantas palavras o amor de um homem por uma mulher
mas uma mulher ama a outra em silêncio
INALCANÇÁVEIS
I
não importa o que eu diga das tuas mãos
vou sentir sempre que as amo pelo que não sei dizer
amo tuas mãos
pelo que elas calam
pelo silêncio que guardam, intacto
como o nome de um pássaro
não catalogado
II
da tua boca não importa o que eu diga
amo-a porque
me escapa
a sombra do meu desejo no teu
tuas palavras buscando as minhas, que buscam
outras, ainda outras
tu e eu
inalcançáveis
dois animais condenados a lamber na carne uma ferida
que é própria da alma
III
mesmo tua voz
também dela só posso amar
o que não ouço
um pouco acima
da tua voz, tua voz suspensa
perdida
num fio
de ar
CADERNO DOS MORTOS
I
os vivos morrem logo
são os mortos que morrem devagar
são os mortos que seguem morrendo depois que os velamos, que os enterramos
passam-se dias, e ainda há fios de cabelo espalhados pela casa
passam-se meses, e ainda vemos o livro
o marcador guardando o fogo da última palavra lida
passam-se anos, e descobrimos na gaveta uma carta escrita de próprio punho e que nunca chegou a ser enviada
são lentos, os mortos
demoram-se nisto de nos revelarem em cadernos um amor que foi calado por toda uma vida
são lentos
como é lento o amor
como é lento reconhecer uma letra, que nos faz lembrar as mãos
como é lento imaginar as mãos, que nos fazem lembrar o pulso
como é lento pressentir o pulso, que nos atravessa
como sangue
em uma hora de hemorragia intensa os vivos perdem todo o sangue dos seus corpos
os mortos no entanto continuam sangrando
sangram por décadas, por gerações
sangram como mênstruo, pelos corpos das mulheres que habitam a casa
sangram no silêncio compartilhado entre mãe e filha
entre duas irmãs
.
e topamos com seus rostos renascendo em outros rostos
não só os da família, mas também daqueles que cruzam por nós na rua
e que não conhecemos
.
sempre acabamos encontrando nossos mortos por aí
eles acham jeito de voltar
de permanecer
eles acham jeito de surgir num sorriso
na cor que certos olhos assumem em tardes mais luminosas
num gesto breve
qualquer
os mortos, os mortos
tão vivos
Mar Becker (Marceli Andresa Becker) nasceu em Passo Fundo (RS) e atualmente mora em São Paulo (SP). Tem formação na área de Filosofia. Seu primeiro livro de poemas, “A mulher submersa”, saiu em maio deste ano, pela editora Urutau.