A MULHER SUBMERSA | MAR BECKER

Marceli Andresa Becker

SERRA SEM FIM

(este texto é parte de uma sequência que ainda venho escrevendo, em prosa poética. a “serra sem fim” tem como base a cena do vapor pairando sobre o rio das antas, cedo da manhã, na serra gaúcha)

a mulher nascida na serra sem fim se levanta

os fios do seu cabelo amanhecem úmidos, de terem sido lavados muito tarde ontem. ela sente o assoalho – a planta dos pés da mulher da serra sem fim

é sempre áspera. ela vive caminhando descalça no chão de pedra do quintal de casa

estende roupa. nos fins de semana come uva colhida de uma parreira tímida
o fruto é miúdo, quase não vinga; ainda assim, há famílias que insistem no cultivo

essas famílias são tristes. há todo um reino de azuis em jogo

.

ela se olha no espelho. tira a calcinha, que é velha
sei que é velha porque não a imagino em cor viva. as lavagens já foram muitas, desbotaram-na

.

aos domingos, depois de amar, ela dorme. de bruços. as pernas semiabertas, imóveis, numa geometria em que poderíamos vislumbrar o ângulo do telhado da casa

chegando a noite, acorda; levanta-se, anda em silêncio pelo corredor, pela sala

.

a mulher da região da serra sem fim lava a calcinha sempre no banheiro, e é o vapor então que resgata o único mar possível nesse lugar. mar como desolação

a certa altura do banho nenhum limite mais separa o vapor da umidade própria da respiração e o da água do chuveiro

.

por vezes uma pássara prenha entra em algum dos vãos do beiral do telhado. com o ninho já construído, ela se instala e põe seus ovos. em fevereiro e março, no período de chuvas mais intensas, é comum que um dos filhotes caia – recém-nascido, horrível. roxo. sem penas, só cabeça e bico

no dia seguinte ele é varrido para um canto e fica amontoado junto com as cascas de uvas comidas. essa é a escola rude de tinturaria da serra:

cadáver, vindima e fome

.

o banho demora em geral uns dez minutos; é um banho rápido. os chuveiros, muito antigos
ao longo desse tempo ela lava a calcinha, suja de sêmen. ao lavá-la, gosta de pensar que

em vez de descer com a água pelo ralo, o sêmen, tal como o álcool, volatiliza-se, dissipando-se com as gotículas de vapor do ambiente

ela toma banho. e respira fundo, sentindo como se o homem que há pouco penetrou seu sexo estivesse agora penetrando seu pulmão

depois
com a toalha enrolada no cabelo, como um animal inaudito – uma espécie mítica, meio mulher, meio rinoceronte
a toalha enrolada como um corno imenso no centro da cabeça

anda. abre a porta de acesso aos fundos. pega um prendedor da cestinha – e, de pés descalços, ainda morna e predatória, pendura a calcinha no varal

.

pernoitam e amanhecem nos varais, as calcinhas. as mulheres recolhem-nas perto do meio-dia, depois do período do vapor

vestem-nas. passam a tarde com elas.
à noite surgem nuas, e os homens amam-nas e dizem que seus grandes lábios cheiram a cerração

.

pela manhã, o sol aparece aos poucos. com seus cabelos volumosos, ondulados, as mulheres mimetizam em menor escala a cena da travessia da claridade nas copas das árvores

a cerração imanta os quartos, imanta os móveis e as cortinas; e os mortos participam desse processo todo, no espaço; em silêncio

de fora, a certa distância, a casa nessas manhãs mal pode ser vista. o contorno dos telhados e das chaminés se perde

na casa fabula-se outra casa. em ruínas


CADERNO DAS MIRAGENS

I

educar os olhos. cegá-los

aprender tudo pelo mar, que espelha o céu – que não tem fim

deus é a terceira margem

a partícula de sal, o grão de areia

os chineses colocavam pérolas nas bocas de seus mortos, para que fizessem boa travessia

no mesmo mar de eternamente, da pérola de eternamente, o barco não cessa de partir

há no méxico uma espécie de borboleta que tem asas transparentes; chama-se “greta oto”

tudo terá valido a pena se antes de morrer eu puder ver um segundo de mundo pela asa de uma borboleta

II

vento sobre vento: assim diz o i ching, no hexagrama 57

li em algum lugar que o i ching é um dos livros mais antigos da humanidade, tendo pelo menos três mil anos de existência

a libélula sumindo do meu campo de vista

uma das hipóteses sobre a origem do nome “libélula” é de que ele viria do termo latino “liber”

também daí vem “livro”; vento sobre vento

na palavra, o silêncio

amar e morrer

o ideal de um livro é que seja escrito numa asa

III

o fim de uma estação

as janelas semiabertas, as casas. a chuva, que parou há pouco

o céu nascendo e morrendo tantas vezes à superfície de uma poça d’água, na calçada

os espelhos

a promessa de dias novos orientando aquele que atravessa uma cidade ou um deserto

os rostos, os rastros

as cinzas dos nossos mortos espargidas
o pó que se ergue no voo da mariposa


À PARTE DO REINO

I

as mulheres são todas iguais

todas, sem exceção. as de ontem, iguais às de hoje, as de hoje, iguais
às de amanhã

que não se engane o meu amor, porque em breve
a ex dele voltará através de mim, para dizer pela minha boca o que não pôde dizer pela sua

eu farei o mesmo, pela boca da próxima
e assim sucessivamente

é uma maldição
entramos na vida de um homem como se fôssemos cada uma
uma só

com o passar do tempo nos tornamos todas iguais

juramos sempre o mesmo amor no começo
rogamos sempre as mesmas pragas antes de bater a porta, no final

sempre a mesma garganta
a mesma língua de gárgula

.

as mulheres são todas iguais

por isso quando caminho pelo bairro me olho nos olhos que me olham
sou a moça parada à janela, translúcida

sou a que atravessa o dia pensando em rosas

do povo
de hiroshima
de gertrude stein
de ninguém

estou na rua, mas estou em casa
estou em mim mesma como no meio de uma catedral vazia, o sino sendo tangido pelo silêncio

.

o meu amor não sabe

se disser o nome de uma mulher, dirá o nome de todas

somos em certo sentido indeléveis como ar. somos todas marias
linhas de sombra e luz, fina fenda

somos um pássaro
e há um mundo inteiro suspenso nos fios de nossa respiração

.

li esses dias que os ciclos de sangue de mulheres que moram juntas tornam-se sincrônicos. vou mais longe, digo que também passamos a nos encontrar

em sonho. nessas horas, até chamamos umas às outras pelo nome

(em voz baixa, para que não se rompa
o fio de prata)

.

as mulheres são todas iguais, basta olhar com atenção

veja, por exemplo:
pouco depois de se separar de ted, sylvia se suicidou usando gás de cozinha
mais tarde, assia, a nova esposa, repetiu o ato

a mesma cena
o mesmo gás
o mesmo homem

as mulheres são todas iguais

.

pelas mãos de salomé, também eu servi a cabeça de joão batista numa bandeja

pelas mãos de lucrécia bórgia, também eu misturei cantarella no vinho
e terminei o dia envenenando um marido

.

esta noite o meu amor se deitará com sua nova namorada. nela estaremos todas

repetíveis, labirínticas
espelhos
espectros umas das outras

de madrugada, ele será seduzido com beijos e cheiros. quando descobrir que é a mesma mulher de sempre

o mesmo antigo demônio fêmeo

nessa hora será tarde. já a terá fecundado
já terá continuado nossa linhagem má

numa filha

*

esta série, ainda em construção, dedico-a a algumas das muitas poetas vivas do nosso tempo. são mulheres que leio e que me acompanham, me influenciam. ao longo dos poemas que a compõem, há passagens remetendo a versos de autoria de algumas delas. discrimino-nos abaixo.

adriane garcia (“o mundo inteiro / depende / do pulsar cardíaco / do pássaro”). ingrid morandian. isabela penov (“aves marias – ou a revoada”). lisa alves. maiara gouveia (“antes que se rompa o fio de prata”). mariana botelho (“o silêncio tange o sino”). nydia bonetti (“quem sabe uma rosa / do povo / de hiroshima / de gertrud / de ninguém”). raquel gaio. roberta tostes daniel (“linhas de sombra, escalas de cinza”). samantha abreu. wanda monteiro (“abre a fina fenda”).


AS FILHAS, AS MÃES, AS AVÓS

I

resta sempre uma palavra muda na minha boca

sempre a mesma palavra trazida da infância, dissolvendo-se na boca

como uma hóstia

II

eu e minha irmã tínhamos cada uma
uma boneca que era como filha, e essas cuidávamos com um zelo sem medida

nas noites de frio, deitávamos elas nas nossas camas, para dormirem junto

e havia toda vez um beijo de boa-noite, e pelas mãos íamos cercando seus corpinhos de pano com relâmpagos

.

éramos muito meninas

os cabelos ainda muito finos, como se tivessem sido feitos por bichos da seda. na pele, os sinais da lua, do eclipse. a sombra no púbis, no umbigo

o sono respirando
nos lábios entreabertos. uma mesma noite atravessava os anos pela boca da mãe até nossas bocas

e das nossas bocas até a boca das bonecas

num ciclo de perpetuação
da fome

VI

sempre que costurava, minha mãe parecia eterna. eu me sentava no chão mesmo, e à sombra do seu corpo meu corpo crescia. quase não falávamos uma com a outra

quando ocorria de falarmos era numa língua composta por uma única palavra, hoje impronunciável

tudo em mim era medo. sentia, por exemplo, que se tocasse minha mãe poderia vir a romper a linha
a única linha invisível
entre tantas outras, visíveis, desenrolando-se continuamente dos carretéis na máquina de costura. por isso não a tocava. e seguia crendo que assim ficava assegurada a manutenção de algum tipo de equilíbrio de cena

.

na mesa de corte, uma almofadinha crivada de alfinetes e agulhas
a janela aberta, e a luz cintilando na ponta da agulha mais alta, como o dedo
de um deus doméstico de inox

VII

em menos de uma semana o chão ficava outra vez tapado de retalhos

eu e minha irmã juntávamos os maiores
pondo-os numa sacola

era com eles que costurávamos os cueiros para nossas bonecas

(coisa malfeita, de um artesanato inábil)

na hora de enrolar os corpinhos, muitas das remendas se abriam
ainda não tínhamos mãos para o trabalho maligno da sutura

.

as manequins nos acompanhavam, seus olhos vazios

eram mulheres paradas no meio do caminho, estátuas de sal
bíblicas mulheres de ló


DUAS MULHERES

I

pelo tanto de água no chão, o rastro indo do banheiro até o quarto

assim uma mulher sabe
da outra – se ela lavou ou não o cabelo

pelo desfiado da costura, percebe que aquela é a calcinha que ela mais usa

pela semente de maracujá retida na base das costas, na curva entre as nádegas
vê que ela prefere sabonetes desses naturais

ao tocar o seio, reconhece o sutiã que se ajusta
ou se ela costuma andar sem

pelo gosto do sexo na língua, descobre o sangue vindo nos próximos dias

nada precisa ser dito

tudo se pressente
se adivinha

depende de tantas palavras o amor de um homem por uma mulher

mas uma mulher ama a outra em silêncio


INALCANÇÁVEIS

I

não importa o que eu diga das tuas mãos

vou sentir sempre que as amo pelo que não sei dizer

amo tuas mãos
pelo que elas calam

pelo silêncio que guardam, intacto

como o nome de um pássaro
não catalogado

II

da tua boca não importa o que eu diga

amo-a porque
me escapa

a sombra do meu desejo no teu

tuas palavras buscando as minhas, que buscam
outras, ainda outras

tu e eu
inalcançáveis

dois animais condenados a lamber na carne uma ferida
que é própria da alma

III

mesmo tua voz

também dela só posso amar
o que não ouço

um pouco acima
da tua voz, tua voz suspensa

perdida

num fio
de ar


CADERNO DOS MORTOS

I

os vivos morrem logo
são os mortos que morrem devagar

são os mortos que seguem morrendo depois que os velamos, que os enterramos

passam-se dias, e ainda há fios de cabelo espalhados pela casa

passam-se meses, e ainda vemos o livro
o marcador guardando o fogo da última palavra lida

passam-se anos, e descobrimos na gaveta uma carta escrita de próprio punho e que nunca chegou a ser enviada

são lentos, os mortos
demoram-se nisto de nos revelarem em cadernos um amor que foi calado por toda uma vida

são lentos
como é lento o amor

como é lento reconhecer uma letra, que nos faz lembrar as mãos
como é lento imaginar as mãos, que nos fazem lembrar o pulso
como é lento pressentir o pulso, que nos atravessa
como sangue

em uma hora de hemorragia intensa os vivos perdem todo o sangue dos seus corpos

os mortos no entanto continuam sangrando

sangram por décadas, por gerações
sangram como mênstruo, pelos corpos das mulheres que habitam a casa
sangram no silêncio compartilhado entre mãe e filha
entre duas irmãs

.

e topamos com seus rostos renascendo em outros rostos

não só os da família, mas também daqueles que cruzam por nós na rua
e que não conhecemos

.

sempre acabamos encontrando nossos mortos por aí
eles acham jeito de voltar
de permanecer

eles acham jeito de surgir num sorriso
na cor que certos olhos assumem em tardes mais luminosas
num gesto breve
qualquer

os mortos, os mortos
tão vivos


Mar Becker (Marceli Andresa Becker) nasceu em Passo Fundo (RS) e atualmente mora em São Paulo (SP). Tem formação na área de Filosofia. Seu primeiro livro de poemas, “A mulher submersa”, saiu em maio deste ano, pela editora Urutau.

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