
VISÃO
Te encontrar numa praia
de areia muito branca e mar muito azul.
Pegar os teus dois olhinhos marrons
e colocá-los num vidrinho em cima
das pedras brancas da encosta.
Ficar ali a ver o mar
e a olhar os teus dois olhinhos
e a lembrar que nem tudo
o que está posto no mundo
é para se pegar com as mãos.
AUTORRETRATO
Imaginas que, também aqui, no frio absurdo do museu, acompanhada do barulho excessivo das marteladas do andar debaixo, da minha total descrença no mundo, do meu coração cansado, até aqui, ou melhor, também aqui, estou a ver o autorretrato de Lucian Freud e, por qualquer semelhança boba (rugas fundas, olhar parado, cara perplexa), estou a pensar em ti. Teriam então que acabar todas as pinturas de homens tristes para acabar também isto: a lembrança de ti em lugares estapafúrdios.
À MESA
Esperar pela morte
como quem espera
pelo jantar:
sem reclamar demais.
ZEN
Para Tito Leite
A vida ligeira das moscas
ensina tanto quanto
a cerimônia do chá.
No Tibete ou aqui na cidade
de São Paulo
o mesmo calor infernal
a mesma desilusão
o mesmo trabalho pesado
(nesta tarde, desisti da poesia).
É sempre isso:
a vida, esta artimanha
eu, a mosca morta.
COMO SOBREVIVER À POESIA
1. É importante conservar a energia.
2. A energia é mais preciosa do que o tempo.
3. Não se apresse sem objetivo ou direção.
4. O deslocamento pode ser a subir
ou a descer encostas inclinadas.
5. Mantenha o peso do corpo
uniformemente distribuído.
6. A menos que seja necessário,
nunca trepe em rochas soltas.
CÃO SEMIAFUNDADO
Tem duas opções, cão:
ou morre cansado, latindo,
se esbaforindo, babando saliva,
com sede,
ou morre tranquilo, bem aninhado,
pensando num belo osso.
Lutar não fará com que não morra,
fará apenas com que morra cansado.
Alguém te salvar nunca foi uma opção.
ELPENOR
Para Ismar Tirelli Neto
A Odisseia, rapaz,
não é sobre viajar
ver Circe ou voltar de Hades
nem sobre contar as glórias das guerras
ou os infernos do submundo.
A Odisseia, rapaz,
tem a ver com sair de casa
e voltar vivo.
SINAL
Ando pela avenida
vazia de gente
quando vejo alguém
é alguém vazio de gente
um corpo pós-atentado.
Tinha lido algo sobre
a sincronização das emoções,
a mundialização dos afetos,
o mesmo terror em toda parte.
É isso, penso, diante
da faixa de pedestres:
o mesmo terror em toda parte.
Ainda fico muito tempo parada,
como um coelho assustado,
antes de atravessar a rua.
Michaela Schmaedel (1976) nasceu e mora em São Paulo, é editora de cultura e poeta. É autora do livro Coração Cansado (Penalux, 2020), Quênia – poemas de viagem (Cas’a edições, 2021) e está na antologia As mulheres poetas na literatura brasileira (Arribaçã, 2021). Escreve resenhas sobre literatura para jornais e revistas e é editora do podcast Poesia pros Ouvidos.