
Haute cuisine
A linguagem nebulosa dos trapaceiros serve apenas a objetivos temporários.
Ezra Pound
Vende-se
Poema limpinho, recatado, do lar,
gestos medidos, voz doce,
Inspirado em __________ ou ____________
(preencha você),
Fácil de escrever,
“conceitual à beça”
prosaico até dizer chega
Não fede nem cheira
Sem susto nem substância
Recheado de clichês
Vende-se
Vendo-me
Foda-se
Inocência morreu de velhice e álcool
Quero aproveitar minha evidência
Os 15 minutos de Andy Warhol
Em lugar de poesia eu trago a pose
(o que você achou que fosse?)
Não importa ter algo a dizer
Eu quero a poesia gourmet
Oniros
Em algum lugar ao norte de Medúsia,
onde não há música, exilada inocência
na sólida paisagem que a visão
hipnotiza sob a ponte: a farsa
de nosso futuro. Com olhos lacrimejantes,
trovões trincam o céu de nossos afetos,
tremem a catedral de sentidos. Um corte.
Fomos contratados para um trabalho
Insondável: instalar estas cercas elétricas.
Agora conversamos entre dispositivos
em algum resort de Bornéu ou da Normandia
com a senha Albert a tiracolo.
O estranho veterano se detém
diante da vitrine
de uma praia de diamantes.
Há uma nave no céu.
Ecos de explosões na Galeria Steinway,
Aroma de algas vermelhas e tóxicas,
câmeras de monitoramento, sabotagem.
Marionetes macabras sorriem enquanto afundam
na areia movediça dos dias.
Há um franchising de sonho aberto 24 horas
e uma chance apenas de tocar e tatear
a Terra para sempre prometida,
antes que a paisagem se estilhace
e vire um hotel feito tão só de ruínas
e habitado só por anjos.
Breve história da solidão
No escuro de uma caverna,
nas paredes de Pompeia,
na superfície de um papiro,
na solidão de uma tela,
num grafite imprevisto
ou na imensidão sidérea,
esses escritos, frágeis rabiscos,
querem dizer apenas isto:
existo.
RODRIGO GARCIA LOPES (Londrina, PR, 1965) é poeta, romancista, tradutor, compositor, ensaísta e jornalista. Publicou os livros de poesia Solarium (1994), Visibilia (1996), Polivox (2002), Nômada (2004), Estúdio realidade (2013), Experiências extraordinárias (2015) e O Enigma das ondas (2020). Sobre este último:
“O enigma das ondas é o sétimo livro de poemas de Rodrigo Garcia Lopes, um dos mais instigantes e inquietos poetas brasileiros que vem, desde os anos 80, construindo uma sólida carreira literária, com vários títulos publicados por esta casa editorial.
Rodrigo Garcia Lopes traduziu Epigramas, de Marcial, O navegante (anônimo anglo-saxão), Rimbaud, Whitman, Apollinaire, tendo apresentado as obras de Laura Riding e Sylvia Plath ao leitor brasileiro. Também lançou um livro de entrevistas com personalidades da arte e da cultura norte-americanas, um romance policial, dois álbuns de canções e coeditou por doze anos a revista Coyote, publicando poetas e prosadores brasileiros e do exterior.
O enigma das ondas revela um poeta em plena maturidade, que reacende a força e a relevância da poesia, mostrando que ela pode explorar em profundidade, e em registros múltiplos, a realidade contemporânea e a existência. Em 91 peças, o volume traz poemas líricos, políticos, críticos, satíricos e reflexivos.
Seus poemas enfrentam o mundo esteticamente e exibem uma urgência vital em nossos tempos turbulentos, como em ‘Selvageria’: ‘No fim o desembargador era o chefão de uma milícia assassina / E o incêndio na favela celebrado com fuzis e buzinas. / Mais cadáveres encontrados na lama da barragem / E o coronel torturador ganha mais uma homenagem […]’. Ou momentos líricos como ‘Na praia, junho’: ‘[…] os olhos bordejando as ilhas distantes / antes mastigaram o nevoeiro / nossos corpos satisfeitos e ainda quentes / lendo as pistas que os detetives noturnos não seguiram / os pés imprimindo em sua passagem / a sensação de uma vida acontecendo / limpa como a areia após a onda’.
Poesia como investigação, aventura da palavra, forma de conhecimento do mundo.
Pela abrangência de questões, pelo esmero estético, O enigma das ondas é um momento alto da poesia brasileira recente.
Samuel Leon