
Ele mesmo: Maiakovski*
Ao
Boris
(óbvio)
A antiga aldeia de Bagdádi
tem o nome de Maiakóvski
é poeta (diz primeiro
receia que se duvide?)
e segue: é justamente
por isto que sou in
teressante
sobre isto escrevo
sobre o restante:
apenas se foi defendido
com a palavra
só me lembro
no ano mil e cem
certos dórios foram
estabelecer-se
não sei onde
nado livremente
em minha cronologia
noções do poético:
atrás da parede
murmúrio infindável
papai e mamãe
não dormi a noite inteira
uma frase martelava-
me sem cessar
(nado livremente
em minha cronologia
: sou poeta)
(aniversários se aglomeram
obrigam-me a decorar versos)
mais tarde, eu soube
que aquilo era o poético
e passei a odiá-lo
em silêncio
além dos valados
florestas chacais
montanhas se abaixam
para o norte
sonhava: é a Rússia
dava uma vontade
puta de ir pra lá
(nado livremente)
soltando curtos gritos
vou tirando os espinhos
depois de ver a eletricidade
deixei completamente
de me interessar
pela natureza
a aritmética parecia inverossímil
no Cáucaso, há frutas
à vontade (outra
Pasárgada?)
odiei no mesmo instante
o que era antigo
eclesiástico e eslavo
é possível que daí
tenham surgido
meu futurismo
meu ateísmo
e meu internacionalismo
(nado etc.)
Notícias Russas
Palavra Russa
Riqueza russa
leio tudo
deram-me corda
apareceu a palavra
“panfleto”
os panfletos eram
pendurados pelos georgianos
os cossacos penduravam
os georgianos nas forcas
passei a odiar
era a revolução
e era em verso
e
como que
se uniram na mente
discursos jornais
conceitos palavras
desconhecidas
exijo explicação
a mim mesmo
lia até a embriaguez
impressionou-me para sempre
a capacidade dos socialistas
de desenredar os fatos
sistematizar o mundo
muita coisa não entendo
misturei Lassale dis
cursos Demóstenes com
pedrinhas na boca
no meu entender
tudo começou
com o seguinte:
meu pai morreu
lembro-me: diante de mim
o primeiro bolchevique
quem foi que se enganou
patrão ou empregado?
dinheiro não há
(nado livremente
em cronologia?)
eu não admitia
a literatura
não existe obra de arte
que me tenha entusiasmado
mais que o “Prefácio” de Marx
o ginásio três editava
a revistinha clandestina
Impulso
fiquei despeitado
outros escrevem
e eu não posso?
fiz ranger a pena
saiu algo incrivelmente
revolucionário
e horrível não lembro
de nenhuma linha
(nado nado nado)
escrevi um segundo
saiu lírico
incompatível com minha
“dignidade socialista”
larguei
eu me chamava “Camarada Constantin”
fui cercado em Gruzíni
nossa tipografia clandestina
comi o bloco de notas
com endereços e capa dura
era acusado de ter escrito
uma proclamação!
conseguimos uma fuga
na prisão fui apanhado
fiz escândalo
li tudo que havia
mais recente
tentei escrever
igualmente
mas sobre outra coisa
não podia
rabisquei todo um
caderninho
obrigado aos guardas:
tiraram-no ao me soltar
senão, capaz publicar
necessito experiência
em arte sou ignorante
se alguém me sacudir
pra expelir o que li
o que vai sobrar?
método marxista
mas esta arma…
me pus a estudar
em mim — o patético
socialista que
conhecia o inevitável
da queda das velharias
nasce(rá) o futurismo russo
de dia saiu-me um poema
ou melhor: trechos ruins
imergi (a nado) in
teiramente em versos
nessa noite de todo
inesperadamente
eu me tornei poeta
(Burliuk me fez poeta)
depois de algumas
noites de lírica
demos à luz
um manifesto
“Bofetada
no Gosto
Público”
o quartel-general das artes
arreganhou os dentes
percorremos a Rússia
anos de trabalho formal
e domínio da palavra
o nariz capitalista
farejava em nós
dinamitadores
na tragédia Vladimir Maiakovski
a vaia foi de estourar os tímpanos
(nado livremente
sorrio em riste)
a guerra está declarada
fui alistar-me
não aceitaram
não tinha bons antecedentes
inverno :: fechem fechem
os olhos dos jornais
meu ódio aos pontos
às vírgulas também
os bolcheviques
escrevo “Revolução”
publico sem nome de autor
que cada complete e melhore
(ninguém fez)
vencendo as delongas
ódios papelórios estupidez
monto a variante do mistério
congrego os futuristas
da comuna
comecei a refletir
sobre o poema
(eu tinha muito medo)
“O Proletário Voador”
e uma coletânea de versos
de agitação, Vai Dar tu Mesmo
uma Volta Pelos Céus a Esmo
viajo em volta da terra
(nado nado nado
livremente)
quero passar
versos à prosa
hei de fazê-lo
(poetas ululam)
a mim acho engraçado
suas baboseiras líricas
a tal ponto é fácil
semelhante ocupação
posição fundamental
contra: a ficção
a estetização
e a psicomentira
por meio da arte
pelo panfleto
jornalismo qualificado
e a reportagem
vou elaborar
o que projetei
estou escrevendo o poema
(:: somos poetas
e nada ::)
uma peça e minha biografia literária
meu trabalho só me interessa quando dá
alegria
nado livremente em minha cronologia
e(u) vou escrever
o ponto
(quando eu morrer
vão ler meus versos
com lágrimas carinho)
e o tiro
* A partir de “Eu Mesmo”, autobiografia de Maiakovski, trad. Boris Schnaiderman. Poemas, 7ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
Thássio Ferreira (1982). Poeta e ficcionista, publicou (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018) e agora (depois) (Autografia, 2019). Mantém a coluna “Alguma coisa em mim que eu não entendo” na Revista Vício Velho, e possui contos e poemas publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Ruído Manifesto, Mallarmargens e InComunidade (Portugal). Seu livro inédito Cartografias, vencedor do Prêmio Cidade de Manaus 2020, será publicado em 2021, com o título Nunca estivemos no Kansas.