O SORRISO DE ANDREI TARKOVSKI | MARCELO ARIEL

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SONHO QUE SOU JOÃO ANTÔNIO SONHANDO QUE É FERNANDO PESSOA

Num subterrâneo Letes ou num Eufrates interno

Tocando ramos de invisível água ou fazendo círculos com pedrinhas atiradas num Tejo etéreo

Não importa…

A quimera-esfinge me espera em todas as margens tendo à sua direita Sá Carneiro e
Antero que riem do riso de Cérbero, quando por eles passo, sou acordado e como se
sonhasse vou ao encontro de Adília Lopes que está dançando nua na fonte cercada por
uma auréola de baratas brancas, Adília me aponta uma carreira de formigas subindo aos
céus, onde nuvens formam o rosto de Dante, sentado cá embaixo e desta vez desperto,
vejo um anjo torto de oito asas lendo perto da casa de Adélia Prado. Sabendo da
existência de uma igreja ali defronte, pergunto ao anjo: “E aí, meu irmão, veio pra
missa?”. O anjo diz: “Não, eu vim pelas formigas”. “E Deus?”, volto a perguntar. “Está
lá ouvindo Bach”. Vou até a igreja, empurro a porta e entro num terreno baldio onde
anjos sem asa jogam bola com moleques sem camisa, todos muito felizes como se
realmente existissem.


O AMOR

No ultra-sonho
estar sendo é ter sido
onde um polvo
epiléptico feito de dois corpos
procura em vão
a luz entre carcaças
depois se transforma
num transparente e maravilhoso
pássaro cego.


PONGE E CELAN: UM DIÁLOGO
para João Gilberto Noll

Ponge: São como peixes de gelo e lentamente se transformam em peixes de fogo…
Celan: Depois são água?
Ponge: Nunca são água ou quando são a água desejam ser o ar e queimam de dentro para fora…
Celan: Eu desejo ser água…


ENTRE A BELEZA E A VERDADE, PREFIRA A BELEZA

Porque ela morre,
a verdade
sem jamais
ter nascido,
a beleza
tendo nascido
jamais cessa
seu caminhar
até o sonho
e depois volta
para a natureza
habitando
sem saber
o esconderijo
da harmonia,
e quando nossos
ossos
como chaves
abandonadas para sempre
de esquecidas portas
brilham no escuro
a verdade
ignorando
a si mesma
os confunde
com uma bússola
para o lugar sem portas,

se uma formiga
com sua delicadeza
voraz
atravessa
as galerias
do que será pó
com uma ínfima
partícula
do que foi nossa carne,
a beleza
segue com ela
para além da verdade.


JOÃO GILBERTO OU COMO SAIR DO TEMPO

Não, não havia a compreensão
de que todas as canções são maneiras
de não apenas parar o tempo,
mas de sair dele,
para uma segunda dobra do espaço
onde respira o vazio perfeito
criador de todas as harmonias impossíveis
Não, não havia a compreensão
de que a canção
é nossa única saída
No lugar da compreensão
havia a selvageria etérea
a selvageria etérea da canção
vem dos sonhos
ou do Sol
a sensação
de que você
está flutuando
enquanto canta
vem dos sonhos
ou do Sol
esse tremor

Os poemas acima são de OU O SILÊNCIO CONTÍNUO Poesia Reunida 2007-2019 ( Kotter Editorial, 2020)


SAMBA PARA RIMBAUD

1

Aurora
os palácios
derrubados
pela água morta.
A flor que disse seu nome.

Deusa de prata.
Coração de ouro

Então levantei os céus
eu a caçava.
a envolvi com seus véus

 

2

Não tem nome?
Perguntaram todos
Essa cala-se
enquanto a noite passa

Quando eu era criança
a noite e o dia
eram duas coisas distintas
hoje parecem ser uma coisa só

3

Ou o tempo ou a vida
Sem triunfo

 

resplandecem
no silêncio

 

Poema do livro inédito A ÁGUA VEIO DO SOL, DISSE O BREU


 

Marcelo Ariel é poeta e ensaísta. Autor de Tratado dos Anjos Afogados (Letra Selvagem), Com o Daimon no Contrafluxo (Patuá), Ou o Silêncio Contínuo poesia reunida 2007-2019 (Kotter Editorial), Nascer é um incêndio ao contrário (Kotter, 2020) e Subir pelo Inferno, descer pelo céu (Kotter Editorial, 2021) entre outros, atuou como ator/roteirista no filme PÁSSARO TRANSPARENTE de Dellani Lima e gravou o disco de spoken word CONTRA O NAZISMO PSÍQUICO com o Projeto Scherzo Rajada. Atualmente coordena cursos de filosofia e escrita em São Paulo e prepara o livro de ensaios A hiperinclusão-processos de cura da ferida colonial e a novela A Vida de Clarice Lispector.

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