
Os espelhos
Peguei o biquíni vermelho com cheiro de novo, a tesoura, e cortei a etiqueta como se realizasse um processo cirúrgico. Eu iria, finalmente, conhecer o mar. Pus o biquíni e fui para a frente do espelho, enquanto meu pai buzinava lá embaixo e minha irmã besuntava meu rosto de filtro solar. Minha outra irmã e minha mãe entraram no quarto nessa hora, e me mandaram encolher a barriga, pegar o chinelo de dedo e ir assim mesmo, sem o baldinho de fazer castelos de areia – que ainda estava na embalagem lacrada e que eu não encontrara em lugar algum.
Eu era a caçula e, mesmo com seis anos à época, me lembro do momento do encontro (ou desencontro) como se ele estivesse aqui, debruçado na janela. A primeira coisa que se entranhou nas prateleiras da memória foi o cheiro. Que perfume era aquele que parecia traduzir em moléculas inaláveis o caroço do verão? Papai mal tinha puxado o freio de mão do Fusca e pulei para fora para quase ser atropelada por um garoto que passava de bicicleta. Minha irmã do meio agarrou meu braço, soltando um palavrão e depois me enchendo de beijos, enquanto minha outra irmã reclamava do calor, minha mãe ajeitava a alça do meu biquíni e meu pai mandava termos paciência e aguardarmos o sinal ficar vermelho. Foi assim que chegamos à praia de Copacabana, em um janeiro empoeirado no retângulo de um porta-retratos, debaixo de um sol que então nascia – pelo menos era assim que eu pensava – para todos ao mesmo tempo e do mesmo jeito.
Foi quando aconteceu. Minhas duas irmãs e eu atravessávamos a areia de mãos dadas e meus pais seguiam logo atrás, com o isopor abastecido com os refrigerantes e o almoço que minha mãe e minha irmã mais velha tinham preparado desde as cinco horas da manhã. Uma voz de mulher rasgou a brisa ao meio, com um gemido: “Ninguém merece”. Era uma moça de cabelos muito louros e muito compridos, que bronzeava o corpo já dourado sobre uma esteira de palha, ao lado de outros banhistas igualmente louros, a menos de um metro de nós. Achei que a moça estivesse falando comigo. Diminuí o passo e meus olhos deram com os dela, que logo desviaram-se para que ela concluísse, com uma voz que parecia contrariada: “Qualquer dia vamos ter que mudar de praia. Olha os favelados chegando.”
Fiquei preocupada, imaginando que a palavra “favelados” pudesse se referir a alguma espécie de animal peçonhento ou, pior ainda, a algum fenômeno atmosférico hostil, como um vendaval, cujos sinais a banhista loura, naturalmente versada em praias, tivesse pressentido e expressado com o pesar justificável de quem esperava um dia perfeito. Virei para perguntar a meu pai se haveria algum perigo, mas minha irmã tapou minha boca e minha mãe me empurrou de leve para que continuasse caminhando em direção ao mar. “Quem são os favelados?”, sussurrei à minha irmã do meio, quando já estávamos longe o suficiente das esteiras de palha opaca. “Somos nós, Camila”, respondeu, em um inesperado grito.
Mas nós não somos favelados, disse a mim mesma, após uma longa explicação do meu pai, que misturou abstrações como elitismo e etnicidade. Era como se o dicionário, que eu adorava usar nos meus trabalhos da escola, de repente se comunicasse comigo em uma língua estrangeira.
A frase enfiara toda a minha vida – aqueles seis anos de estreia com o mundo – em um rótulo. Meus cabelos não eram um adjetivo, para mim. Eram apenas meus. Minha pele não precisava ser categorizada como de cor (até porque toda pele tem uma cor); era antes minha. Meus pais, o isopor do almoço, nossa casa na cidade do interior (a duzentos quilômetros de uma favela, aliás), meu pai enfermeiro e trompetista da orquestra local, minha mãe e as histórias que contava para nós três enquanto, enfileiradas pelo chão da cozinha, aguardávamos o bolo de chocolate assar. Olhei para tudo aquilo e não vi. Era apenas a voz da mulher, alienada e alienígena, emitindo a frase que nos achatava. Um rolo compressor de tudo o que antes tivera volume. Me vi refletida na frase, paradoxal casca que me descascava.
O perfume do mar, naquele dia emaranhado em um chumaço do tempo, tornou-se não pior, não melhor, não desperfumado – apenas outro. O sal, que, minutos antes, acariciara meu olfato como purpurina, tornou-se sal. As coisas mudaram de nome. O mistério tornou-se mar, água, areia e espuma.
A folha do tempo tornou-se desbotamento, retrato.
Preto e branco.
Natália Nami é autora de O contorno do sol (Rocco), “um dos bons romances do ano” (José Castello, O Estado de São Paulo). Duas vezes finalista do Prêmio SESC de Contos Machado de Assis (com “Princesinha do mar” e “Briga de casal”), Natália firma-se definitivamente na cena literária brasileira com A menina de véu (Rocco), seu segundo romance, descrito por Godofredo de Oliveira Neto como “algo raro na nossa literatura contemporânea”. A menina de véu é indicado a dois dos mais importantes prêmios literários em língua portuguesa: o Prêmio São Paulo de Literatura e o Prêmio Literário José Saramago. Natália Nami nasceu e mora em Barra do Piraí, Vale do Café sul-fluminense.