
SE COMPARAR VOCÊ COM O SONETO N. 18 DE SHAKESPEARE SEI QUE VAI PERDER
a língua que já ardeu
sob a lua
expele na aurora
o rugido seco do leão
se comparar você com o soneto n. 18
de shakespeare
sei que vai perder
o prognóstico é de chuva nas próximas 48 horas
registre no circuito de divagações do insone
pequenos rascunhos
& evite
as grandes palavras
escreva o postal
para o amigo
diga que ele
faz falta à paisagem
ignore a imagem da criança inerte
à beira do mar
a fuga foi pequena como o seu corpo & o caminho
longo
para os sapatos molhados
tente esquecer a cena e ligue o visor da esteira
na academia
lá estarão em preto e branco o czar nicolau & o kaiser durante a primeira grande guerra
enquanto no telão do programa matutino a apresentadora
exibe um bife à milanesa
lá fora o homem triste passeia um guarda-chuva
no mais é atravessar a rua. tomar uma média com pão na chapa e se inscrever
nas aulas de dança do marcinho
ali
bem na esquina de nossa senhora com república do peru
O BOTÃO DO MANTO DE ULISSES
no monopólio do silêncio
do pátio
– a vida um travessão
separando resíduos de sono e vigília –
ele transita entre guerras perdidas &
o choro abafado
da costureira em coma
leva nos olhos semicerrados
dançando entre sombras
projeções na tela da memória
entre as pálpebras
a busca de narrativas
na soleira do sonho em que
penélope seduz ulisses
a sensação de que o entregador
de jornal no pátio
é o fiel garantidor da restituição
de sete dias caminhados
na engrenagem do relógio
cada movimento
desenhado pelo anterior
não fora o limiar do abismo
naquele ponto onde aquele que sonha
trafega em duas direções
incógnito
na manhã que pousa quase
estática
não a sacudisse o som da valsa mefisto
nos passos firmes de daemons que dançam
junto às trincheiras de lixo
NA CONTRAMÃO
e não sei como ele veio parar aqui
do cactus coberto de algodão no deserto
a esta fantasia dialética de avenidas
espremendo o peito entre perguntas e guindastes
o mar que se move no ouvido
se ele mora de frente para o cais e enxerga o vazio de partidas
fixa a imagem de cargueiros parados
& seu mundo volteia em torno de uma paisagem em que
controla o calendário
sem usar as mãos
como a poeta do além-mar
ao cruzar o atlântico com a memória
dizer que eles chegam é pouco
que transbordam nas fronteiras
jogam baralho e vomitam água é pouco
homens roleta
dizer que a bola cai no número errado é pouco
tem mais tropeço do que trilha
dizer de tanto fiapo de coisas jogadas às costas até a primeira tenda oferecida
dizer que em relação àquele problema de futuro a gente vai ficando por aqui
os pés & o mistério de rotações trocadas
os dele estão protegidos por um cobertor
não levanta os olhos & escreve
sob a marquise
tudo pode esconder tudo
Tite de Lamare é carioca, nascida no bairro do Flamengo. Fez jornalismo na PUC, trabalhou no Jornal do Brasil e saiu do Rio em 1970, com algumas passagens por Brasília e algumas andanças pelo mundo. Desde 2002 está radicada no Rio de Janeiro. Morou respectivamente em Londres, Buenos Aires, Brasília, Moscou e Buenos Aires. Em 1997 publicou o livro Caminhos da Eterna Rússia pela editora Expressão e Cultura. Estreou como poeta em 2021, pela 7Letras, com O que não cabe na boca